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A retirada americana

Rogério Simões | 18:57, quinta-feira, 19 agosto 2010

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tropaseuablog.jpgLivros de história talvez apontem o dia 19 de agosto de 2010 como o fim da guerra no Iraque. Ou, pelo menos, de uma delas. A retirada das últimas tropas de combate dos Estados Unidos de território iraquiano põe um ponto final no engajamento de Washington em confrontos armados no país, mas isso é apenas parte da história.

A guerra iniciada em 2003 foi vencida rapidamente, com Bagdá sendo tomada após menos de um mês. Pode-se dizer que em seguida veio um segundo conflito, que misturou insurgência e disputas étnicas. Durou bem mais do que a primeira, um total de sete anos. Os Estados Unidos agora encerram seu envolvimento em combates no país, mas o Iraque segue marcado por atentados suicidas da Al-Qaeda e uma paralisia política. Apenas dois dias antes da retirada final, militantes promoveram mais uma carnificina na capital, com um atentado que deixou 51 mortos. Um alto comandante do Exército do Iraque diz que o país não está preparado para a retirada total das tropas americanas, prevista para o ano que vem (até lá 50 mil soldados continuarão dando treinamento e protegendo interesses dos EUA). O governo americano ensaia dizer que a missão está encerrada, após avanços na redução da violência. Mas não ousa declarar missão cumprida. Para os iraquianos, a paz ainda é um sonho distante.

Os Estados Unidos estão deixando o conflito por vários motivos, entre eles porque sabem que não têm como promover mais avanços significativos. Após gastar quase US$ 1 trilhão ao longo de sete anos, Washington entrega uma nação que ainda não conseguiu formar um governo, cinco meses após as últimas eleições. Atentados suicidas são uma constante, e o Iraque corre o risco de se tornar palco de uma grande disputa por influência, envolvendo o Irã, o fanatismo da Al-Qaeda, grupos iraquianos sunitas e os curdos, que controlam o norte do país. O Iraque está muito longe de ser uma moderna e pacífica democracia, mas a superpotência não se considera capaz de fazer muito mais a respeito.

A retirada das tropas americanas diz muito mais sobre o futuro papel dos Estados Unidos no mundo. Quando podia gastar, o país jogou centenas de bilhões de dólares no Iraque e outas centenas de bilhões no Afeganistão, outra guerra em que enfrenta dificuldades sérias. Mas, após a crise financeira, que quase virou depressão, os americanos mal conseguem manter a recuperação da sua economia. Sua estrutura militar não terá mais recursos, pelo contrário, sofrerá cortes. Se quisessem invadir o Irã para conter o programa nuclear persa, haveria muitas dúvidas sobre suas chances de sucesso. O momento, ao que tudo indica, não é de imperialismo ou interferência militar de Washington em nações mundo afora. É de recuo.

O secretário da Defesa, Robert Gates, promete o início da saída das tropas americanas do Afeganistão para 2011. No Oriente Médio, atores locais, como Irã e Turquia, têm cada vez mais prestígio e influência. A América Latina hoje é muito mais do Brasil e das nações ibéricas do que dos Estados Unidos. Na África, China, Brasil, Índia ganham cada vez mais espaço. No Extremo Oriente a influência americana ainda é grande, com a Coreia do Sul ciente de que precisa de suas tropas para conter a retórica bélica dos comunistas do norte. Mas, na Europa, os Estados Unidos perderam espaço para os russos, que se beneficiam da sua importante posição de exportador de energia. Barack Obama gosta do mundo exterior, onde é admirado por suas ideias e por sua postura multilateral e diplomática. Mas o presidente sabe que o momento é de cuidar das mazelas internas, como a alta taxa de desemprego, os danos ambientais causados pelo vazamento da BP ou a violência na fronteira com o México. A retirada americana vai muito além do Iraque.

Lula e Irã: mundos distantes

Rogério Simões | 19:26, segunda-feira, 16 agosto 2010

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lulaahmadinejadblog.jpgOs dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva reúnem vários marcos, de grandes feitos a lamentáveis gafes, em sua política externa. Há momentos marcantes envolvendo a relação do Brasil com o resto da América do Sul, a ascensão ao lado de Rússia, Índia e China, a decisiva ação brasileira dentro da OMC (Organização Mundial do Comércio), o respeito obtido junto aos Estados Unidos, a crescente influência na África, a consolidação do Brasil como natural candidato a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e o diálogo político e comercial com regimes autoritários. Analistas brasileiros tendem a dar mais destaque a pontos positivos ou negativos, dependendo de sua visão ideológica sobre como o Brasil deveria se comportar diante do mundo. Mas, apesar de tantos papéis de destaque, a política externa brasileira recente corre o risco de ser marcada pela polêmica aproximação com uma nação que há poucos anos tinha pouca relevância para o Brasil: o Irã dos aiatolás, do petróleo, do programa nuclear e do apedrejamento de mulheres adúlteras.

Nesta segunda-feira, o presidente Mahmoud Ahmadinejad rejeitou formalmente a oferta de asilo dada por Lula a Sakineh Ashtiani, condenada originalmente a morrer apedrejada por ter supostamente cometido adultério. Segundo Ahmadinejad, o Poder Judiciário do país não concordou com a ideia. A decisão não surpreende: um porta-voz do regime em Teerã já havia mostrado surpresa com a sugestão do presidente brasileiro, dizendo que ele era "emotivo" e estava mal informado sobre o caso. Tal reação já indicara o largo oceano que separa o presidente Lula do regime iraniano, por mais que o chefe de governo brasileiro insista em chamar seu colega Ahmadinejad de "amigo".

Ao sugerir ao presidente do Irã que Ashtiani fosse mandada para o Brasil, Lula demonstrou desconhecimento sobre o país dos aiatolás. Ahmadinejad pode ser a figura iraniana mais visível fora do país atualmente, mas o verdadeiro poder está nas mãos do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei. Além disso, o presidente apenas governa porque o Conselho dos Guardiães, responsável por assegurar o respeito às leis islâmicas do país, permite. A entidade, controlada por Khamenei, rejeita leis aprovadas pelo Parlamento, reprova candidaturas à Presidência e controla muitas outras áreas da vida pública nacional. Ao contrário do que Lula diz, Ahmadinejad não é seu amigo, mas apenas um aspecto do poder instalado em Teerã. Ele está interessado em conectar seu país com forças emergentes que possam anular parte da hostilidade ocidental contra o Irã, mas não há nada de amizade nisso. E, mesmo se fosse "amigo" de Lula, nada faria contra uma decisão da Justiça do seu país, especialmente numa questão envolvendo o respeito aos radicais princípios da lei islâmica xiita.

O acordo obtido neste ano com o Irã por Brasil e Turquia, envolvendo o enriquecimento de urânio fora do Irã, não foi um acidente ou uma aventura. Foi uma relativa conquista elogiada por muitos analistas estrangeiros, especialmente na Europa. Os governos brasileiro e turco avistaram uma lacuna diplomática deixada pelo Ocidente e a preencheram. O contexto é claro: a falta de solução para o conflito entre Israel e palestinos, um fracasso diplomático dos Estados Unidos, fez aumentar a influência de Irã, Síria e agora a Turquia no Oriente Médio. O Brasil, membro político, econômico e cultural do Ocidente, apresentou-se como novo ator na região e segue acumulando respeito. Mas isso não faz de Ahmadinejad um "amigo" do presidente Lula, nem dá poderes ao presidente brasileiro de interferir em questões internas do país com base numa suposta relação pessoal.

Se condenasse, de forma institucional, de governo para governo, a adoção de penas cruéis e o tratamento desumano das mulheres no Irã, exigindo que o regime, e não Ahmadinejad, suspendesse a sentença dada a Sakineh Ashtiani, Lula poderia incomodar a estrutura política iraniana. Seria, inclusive, mais respeitado em Teerã por isso. Um caso delicado envolvendo a adoção da lei islâmica (sharia) não se resolve numa conversa de amigos, e Ahmadinejad não é amigo de Lula. Ele não irá a um de seus churrascos, nem deportará para São Paulo uma mulher condenada por um crime considerado grave em seu país. Ele é um servo da ala conservadora das forças revolucionárias iranianas, fiéis a Ali Khamenei, que nos últimos anos sufocou os reformistas. Trata-se de um complexo jogo político nascido na revolução islâmica de 1979 e que já pendeu para o lado progressista, mas hoje segue um rumo de muito menos tolerância. Nada que o "emotivo" Lula possa mudar da noite para o dia.

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