Representantes do povo
Os membros do Legislativo estĂŁo sob pressĂŁo. A utilização de verbas pĂşblicas para benefĂcio prĂłprio, no que Ă© descrito como abuso de regras mal definidas, abalou ainda mais a imagem de parlamentares diante do grande pĂşblico. Diante disso, o governo e a oposição foram Ă TV dizendo que uma solução seria encontrada, mas idas e vindas adiaram uma decisĂŁo definitiva. Em meio Ă maior crise econĂ´mica mundial desde a dĂ©cada de 30, o Legislativo aparece ocupado debatendo a sua prĂłpria remuneração.
Pode parecer incrĂvel que, com o parágrafo acima, eu esteja falando ao mesmo tempo de dois paĂses tĂŁo distintos em termos de histĂłria, nĂvel de desenvolvimento e poderio econĂ´mico: Brasil e GrĂŁ-Bretanha. Como se um espelho tivesse sido erguido no centro do Oceano Atlântico, num ponto equidistante entre as costas brasileira e britânica, parlamentares dos dois lados enfrentam constrangimentos semelhantes. E medidas tomadas para resolver tais problemas parecem incapaz de conter a constante perda de credibilidade do Legislativo junto ao eleitorado.
No Brasil, a PresidĂŞncia da Câmara dos Deputados acaba de limitar a utilização de passagens aĂ©reas pelos representantes do povo, proibindo que o benefĂcio seja passado a parentes e amigos. Mas as irregularidades cometidas atĂ© agora foram perdoadas. Já aqui na GrĂŁ-Bretanha, estĂŁo concentrados na ajuda fornecida aos membros da Câmara dos Comuns de fora de Londres para que tivessem uma segunda residĂŞncia que facilitasse sua presença na capital durante a semana. Quando a ministra do Interior, Jacqui Smith, designou a sua casa como "segunda casa" e a casa da irmĂŁ, em Londres, como primeira, para garantir o benefĂcio, o esquema foi bombardeado por todos os lados. O fato de o marido da ministra ter visto dois flmes pornĂ´s em casa e colocado a conta nas despesas parlamentares da esposa nĂŁo ajudou.
Como no Brasil, os parlamentares britânicos e o governo, que aqui Ă© formado totalmente por membros do Legislativo, começaram a se mexer para mudar o sistema e melhorar sua imagem. Mas as emendas tentadas saĂram, atĂ© agora, muito piores que o soneto. De inĂcio, o primeiro-ministro Gordon Brown fez o que sempre se faz nestas terras: passou a uma comissĂŁo, o ComitĂŞ de Padrões da Câmara dos Comuns, a tarefa de uma solução para o problema. Mas, antes que o comitĂŞ terminasse seu trabalho, Brown, de surpresa, com uma proposta que certamente considerava brilhante: a ajuda de custo para uma segunda casa seria substituĂda por um adicional no salário pago a cada dia que o parlamentar aparecesse no seu escritĂłrio em Westminster.
NĂŁo pegou bem. O paĂs inteiro começou a dizer que os parlamentares seriam agora os Ăşnicos trabalhadores que, alĂ©m do salário, ganhariam um extra apenas para dar o ar da graça no emprego. A proposa era para ter sido votada no Parlamento nesta semana, mas Brown, ao perceber que poucos o apoiariam, retirou o projeto. E tambĂ©m o seu time de campo, dizendo que quem cuidaria do assunto seria o tal comitĂŞ.
É lĂłgico que temos de lembrar que, considerando-se as realidades brasileira e britânica, se tratam de grandezas bem diferentes. Se passagens aĂ©reas de membros da Câmara dos Comuns tivessem sido usadas por amigos e namoradas de parlamentares ou jogadores de futebol, o regime parlamentar britânico estaria com os dias contados. Mas, proporcionalmente, o descrĂ©dito do Parlamento junto ao eleitorado, no Brasil e na GrĂŁ-Bretanha, Ă© semelhante. A diferença Ă© como os legisladores dos dois paĂses parecem ver o problema.
Tanto aqui como no Brasil medidas estĂŁo sendo tomadas, diante da indignação popular. Mas os deputados brasileiros fizeram questĂŁo de reclamar da imprensa, que teria exagerado ao cunhar o termo "farra das passagens". Aqui os parlamentares sĂŁo mais humildes, dizendo que o eleitorado tem direito de se indignar com qualquer abuso. Mas de uma realidade nenhum deles poderá fugir: em ambos os lados do Atlântico os parlamentares poderĂŁo perder seu emprego em breve, já que os dois paĂses terĂŁo eleições gerais no ano que vem. Com base nas reações diante da exposição das crises pela imprensa, aparentemente os britânicos tĂŞm mais medo do veredicto popular.