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A 'nova' letra de 'Águas de Março'

Thomas Pappon | 2008-03-20, 11:03

Quem assiste TV em Londres já deve ter notado o comercial classudo da British Gas, com uma mulher cantando o que parece ser uma versão em inglês de Águas de Março, de Tom Jobim.

Assistindo ao pela quarta ou quinta vez, pesquei alguns fragmentos da letra, tipo “it’s someone on call” (“é alguém de plantão”), na cena em que aparece uma telefonista em close, e “it’s a moment for me” (“é um momento para mim”), quando uma mulher relaxa em uma banheira.

Até aí, tudo bem. Na minha cabeça de fã e pesquisador amador dos meandros da bossa e MPB, supus que a versão deveria ser de um Ray Gilbert ou Gene Lees da vida, distante do original e adaptada ao gosto americano.

Mas a letra parecia encaixar bem demais no comercial - um apanhado dos vários serviços oferecidos pela gigante do setor de energia.

Fui investigar e minhas piores supeitas se confirmaram. Um dos grandes clássicos da música brasileira foi arrendado, teve sua letra trocada, enfim, para pontilhar um comercial de TV britânico.

A original em inglês de Waters of March, do jeito que foi gravada por Al Jarreau, Art Garfunkel, David Byrne, Cassandra Wilson e mais um monte de gente boa, foi feita pelo próprio Tom.

Deve ter dado um trabalho dos diabos: Tom manteve o ritmo e o tema (natureza, ciclo de águas) da letra em português e substituiu todos os nomes de bichos, plantas, lugares e elementos folclóricos. A letra em inglês é enorme, tem 50 versos e quase nenhum se repete. Tudo isso foi para o lixo.

A letra que se ouve no comercial é essa:

A drip a drop
A fresh fall of snow
Icy air, a breath
A flow
It's a moment for me
A rig in the sea
It’s heat in a hall
A lesson at school
It’s someone on call
A load off your mind
It’s a thousand little moments
that we have today

Minto. “A drip, a drop” tá na letra do Tom. Agora “uma plataforma de petróleo no mar”, “é aquecimento no salão”, “é alguém de plantão”, não dá, né? Isso aqui é “Águas de Março”, pô, eleita por 200 especialistas ouvidos pela Folha de São Paulo em 2001 como a melhor de todas as músicas feitas no Brasil.

Um patrimônio cultural, tão importante quanto, sei lá, Congonhas do Campo ou o quadro Abaporu. Deveria ser protegido e tombado, e não violado por um trocado, por melhor e bem-vindo que fosse.

Imagine um produtor de frango no Brasil usando Eleanor Rigby em um comercial de TV, com letra falando de “carne macia” e “coxinha congelada”. “A rig in the sea” é o escambau!

Estou certo?

dzԳáDzDeixe seu comentário

  • 1. à 12:46 PM em 20 mar 2008, wilando kurth escreveu:

    vc esta certo THOMAS!

  • 2. à 01:09 PM em 20 mar 2008, Anonymous escreveu:

    Ta certissimo! Mas olha que eu gostei da ideia de cantar "Olha a coxinha congelada", no refrao de Eleonor Rigby.

  • 3. à 01:33 PM em 20 mar 2008, Marcelo Crescenti escreveu:

    Realmente lamentável, Thomas. Será que vai dar processo?

  • 4. à 03:03 PM em 20 mar 2008, Danton Porto escreveu:

    a plataforma no mar já diz tudo. sujaram a letra. Eu imagino o óleo vazando e manchando o resto da música.

    O passarinho na mão seria aquele que naturalistas encontram nas praias quase mortos lambuzados de óleo.

    o fundo do poço seria um lençol freático contaminado.


    o corpo na cama seria alguém que trabalhou o dia inteiro na plataforma e resolveu deitar nos limpos lençóis, sem nem mesmo tomar uma ducha.

    blarg...

  • 5. à 03:46 PM em 20 mar 2008, Beatriz Bringsken escreveu:

    Thomas,

    senti que a MPB foi usada como um produto descartável. Mas não é isso que a modernidade oferece? roubam a música local, modificam para algo global e fazem dinheiro com isso. Uma pena!

    Mudando de assunto - e vendendo o meu peixe: Sou mestranda em International Development Studies na Holanda e tenho bolsa do Erasmus para estagiar dentro da Europa durante 3 meses (pois tenho o passaporte europeu), só preciso achar um lugar. Sou formada em jornalismo e gostaria de "solicitar" um trainee na tv Londres. O que eu faço?

  • 6. à 04:39 PM em 20 mar 2008, Egbert Fernandes escreveu:

    Você tá certo pracai, camarada. Quem aproveita uma obra de arte dessas é deturpa desse jeito tem que ser processado e execrado , definitivamente.

  • 7. à 06:58 PM em 20 mar 2008, Ludi escreveu:

    Thomas,
    Você deve estar há um bom bocado por aí já que se esqueceu que, "assassinato por assassinato", o que fizeram com a coitada da Elisa não tem descrição.

    Refiro-me a 'Para Elisa', de Beethoven, consagrada aqui como "A música do caminhão de gás" ou da "chamada em espera":

    Tã nã, nã nã, nã nã, nã nã, nã naaã...

  • 8. à 01:41 PM em 21 mar 2008, Ana Fonseca Matos escreveu:

    O mundo dito "civilizado" quer sempre esculhambar o Brasil.

    Ja vivo ha Holanda ha quase 10 anos e vi muitas apropriacoes indevidas.

    Em uma publicacao francesa a afirmacao de que a caipirinha nao era uma bebida brasileira e sim proveniente da Martinica.

    Ha um jogador de futebol holandes que dizem ser o verdadeiro "Fenomeno" e nao o Ronaldo.

    Holandeses geralmente estao 100% convencidos de que a cancao "Mais que nada" nao tem letra ! Se eu comeco a cantar a letra ficam enfurecidos !!

    Se eu mencionar bio-combustivel e porque leio muita obra de ficcao cientifica. Se dizer que somos quase 200 milhoes de habitantes dizem que sou megalomaniaca. Se disser que temos observatorio espacial entao... Ou celulares... ou acesso internet... ou publicacoes em portugues... ou entao...

    O pessoal do hemisferio norte duvida de que exista inteligencia abaixo da linha do Equador. Isso prova o nivel de "inteligencia" deles.

  • 9. à 05:12 PM em 21 mar 2008, Իé escreveu:

    Thomas...
    sabe que a indignaçao é tamanha, sem comentários.
    O tempo todo, enquanto lia seu artigo pensava: meu deus, o que o Tom Jobim diria a respeito?
    Quando me lembro da alegria dele quando se referia a elementos da natureza, durante suas entrevistas no jardim de sua casa, a reverência que tinha aos pássaros, árvores, flores, tudo isso que o Brasil tem de sobra. Pra nossa sorte!
    Tudo isso está tao distante de tudo o que o hemisfério norte pode imaginar, que me faz compreender esta estupidez com que lidam com as coisas. A ignorância em relaçao ao terceiro mundo, que coincidentemente está abaixo da linha do equador, em sua grande parte, e que coincidentemente tem muito sol e natureza sem pedir nada e comprar de ninguém.
    Bom nao vou me estender mais.
    Um pedido: escreva mais, escreva sempre. Uma sorte conhecê-lo.
    Grata.
    Իé Pimentel

  • 10. à 07:32 PM em 21 mar 2008, Beatriz Michelle escreveu:

    Ana,
    que umbiguismo é esse? o Brasil não é o centro das atenções de nenhum mundo, independente de ser civilizado.
    Fora os brasileiros, ninguém mais tem obrigação de saber tudo sobre o Brasil. E não generalize os comentários dos holandeses. Talvez vc precise só incluir uns amigos mais cults no seu circulo de amizade.
    Qto a apropriação de "produtos culturais" isso acontece com todos os países, é um processo contemporâneo da pós-modernidade (segundo Arjun Appadurai)

  • 11. à 04:21 PM em 22 mar 2008, Fabiano Cruz escreveu:

    Infelizmente é constatada uma versão não-autorizada e fica por isso mesmo. E só continua a acontecer atrocidades como não existe uma ação judicial com resultado positivo.

    A denúncia e revolta está super apoiada Thomas.

  • 12. à 04:22 PM em 22 mar 2008, é escreveu:

    Bobagem, fazem coisas parecidas com a MPB por aqui mesmo o tempo todo em comerciais bem mais chulos e nínguem liga, Nós pdoemos desmerecer a nossa cultura e os outros não? Um comercial inocente não é nada que vá "sujar a nossa honra" ou nos diminuir em qualquer sentido to termo.
    Bom é parar com essa mentalidade de complexado e focar no que realmente nos desmerece, que é a posição atual da "música popular brasileira", essa que o povo escuta e gosta e é um verdadeiro monumento à falta de refinamento cultural. A MPB feita à moda antiga foi largada num canto e hoje não passa de um pequeno nicho frequentado por bichos-grilos e pseudo-intelectuais e alguns apreciadores verdadeiros.

    O verdadeiro estrgo já foi feito por nós mesmos a muito tempo e ninguem reclamou ainda.

  • 13. à 01:41 PM em 23 mar 2008, Larissa escreveu:

    Certissimo e te conto mais, aqui em casa foi uma briga quando falei com marido que achava exatamente o mesmo que voce. E vou alem, jah viu um outro comercial em que usam Edith Piaf - Non, je ne regrette rien??? Com legendas absurdas? Nao lembro do anunciador, mas acho que eh M&S, nao tenho muita certeza... Enfim... What a shame...
    :(

  • 14. à 04:35 PM em 23 mar 2008, Isabeli escreveu:

    Meu caro, está certíssimo!
    Águas de março é perfeita. Mas como podemos exigir compreensão dos americanos se nós enquanto brasileiros não valorizamos nossa MPB?!
    Verdade seja dita, o Brasil é movido por mídia e consequentemente moda, nossa cultura está pra lá de esquecida.
    Mas 'não tem problema', a genialidade de Tom foi reservada para nós, difícilmente poderiam entendê-la num comercial barato.
    çDz

  • 15. à 08:16 PM em 23 mar 2008, Oliveira escreveu:

    A apropriação cultural é coisa antiga. Aqui nos Estados Unidos o "pai da aviação" são os irmãos Wright e, claro, nunca ouviram falar do Santos Dumont. Mas também o que vocês querem? No balcão de um aeroporto internacional, a atendente examina o meu bilhete e me pergunta, "Is Brazil a country?" Quase que eu respondi, "Minha filha, você está precisando de umas aulinhas de geografia geral." O nível de desinformação é incrível. E ainda acham que isso aqui é o máximo, o melhor de todos os países do planeta. Mas eu me pergunto, como podemos julgar se nem mesmo conhecemos o outro?

  • 16. à 05:33 PM em 24 mar 2008, Իé Carla Morandini escreveu:

    Daqui do Brasil tenho o prazer de me deparar com seu blog e artigo e ler as diferentes e enriquecedoras opiniões dos comentaristas. É bom ver gente divergindo com propriedade. Num primeiro momento, a revolta contra a apropriação e banalização da música me ocorreu, no entanto, depois de ler argumentos contra, também pude relativizar e analisar mais a fundo e perceber que, de fato, isso é um fenômeno cada vez mais presente no mundo plugado.

  • 17. à 02:46 AM em 25 mar 2008, Oliveira escreveu:

    Será que realmente existe algum "comercial inocente" nos dias de hoje? Não se trata de "sujar a nossa honra" e sim defender o que valorizamos, nossa cultura. Às vezes fico estarrecido com o conceito de "cultura" de certos brasileiros. Lembro-me que à vésperas da nomeação de Gilberto Gil como Ministro da Cultura, Veja publicou um artigo onde o jornalista basicamente questionava, "para que precisamos de um ministro da cultura", "para que cultura?" Só faltou dizer, "e logo um negro?" (embora tenha insinuado nas entrelinhas). Nunca me esqueço a definição de cultura por parte de uma ex-professora de português (hoje catedrática da USP), "Cultura é tudo que o homem pensa e faz." Esta noção obviamente se opõe ao conceito de cultura como "refinamento cultural" ou "fulano ou sicrano não tem cultura." Todos, independentemente de nosso grau de escolaridade, temos cultura. Eu, como brasileiro radicado nos EUA, mais que nunca vejo a necessidade de defendermos e preservarmos a nossa cultura. Acho que o artigo do Thomas é um exemplo a ser seguido. Parabéns, Thomas.

  • 18. à 01:50 PM em 25 mar 2008, Beatriz Bringsken escreveu:

    Concordo com o Régis, a música que está sendo tocada no Brasil era o que deveria ser mais questionada. Transformar músicas, filmes e literaturas locais em globais, alterando a origem e não repassando os merecidos créditos é algo que acontece há muito tempo.

    Eu particularmente gosto muito das músicas indianas que alguns comerciais da Peugeot mostram.

    PS.: é complicadinho postar aqui neste blog. na maioria das vezes demora pra ser enviada e poucas vezes aparece a mensagem de envio. isso é comum ou só acontece comigo?

  • 19. à 10:23 AM em 26 mar 2008, Milton Junior escreveu:

    Beatriz, isso acontece comigo por vezes. Hoje estou dando a maior sorte, pois meus comments estão indo ok para o site. Mas por vezes, o negócio empaca e não tem quem faça dar um passo pra frente.

    Sobre a questão da música, eu queria perguntar também: Se aqui na minha cidade (no coração do RS), o ECAD (uma união misteriosa que cobra direitos até sobre a tv ligada dentro de ônibus urbano), porque não entrar em ação sobre uma música brasileira sendo usada no exterior... provavelmente sem autorização... e, convenhamos, "a rig in the sea"? Isso é pra ser uma piada?

  • 20. à 08:26 PM em 02 abr 2008, Jose Jorge escreveu:

    Concordo e ainda digo mais...deveria uma legislação proibindo este tipo de coisas. Espero que pelo menos o dinheiro tenha valido a pena.

    çDz.

  • 21. à 05:56 AM em 05 abr 2008, Pérsio Piccinini escreveu:

    O colunista é muito nacionalista. Eu não vejo nada demais, é uma propaganda elegante e baseada numa das melhores músicas do Tom Jobim. Quisera no Brasil termos propagandas de tão bom nível...

  • 22. à 04:36 PM em 05 abr 2008, Cecy escreveu:

    Lendo as opiniões, me fez lembrar de quando fizeram uma referência ao Rio de Janeiro de maneira jocosa e grotesca, como muitos disseram na ocasião, nos "The Simpson". A mensagem para mim foi muito clara, já que para quem acompanha a série, tudo é satirizado, inclusive a própria sociedade americana com os seus devidos clichês que os Simpsons abordam de maneira bem interesante, nada sério. O que me causou estranheza, tanto quanto o Sr. Thomas, que achou ofensiva a inclusão das "Águas de março" no tal comercial do qual ele se refere. Há vários países que adorariam ser incluídos e referenciados com as músicas mais representativas de seus países, prova disso, segundo o mesmo missivista, que as letras de "Águas de março" teve a participação do próprio TJ nos versos para a tradução. Se vivo estivesse, TJ, teria feito com o maior prazer a tradução ou versão para a propaganda da tv. Os artistas adoram ser reconhecidos pela sua obra, sobretudo, quando elas fazem o "tour" do mundo!!!

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